quinta-feira, outubro 16, 2014

"Porque te amo demais!": Amor e Dependência (III)


A natureza socioemocional do ser humano leva algumas pessoas a uma procura contínua de relações amorosas com o objetivo de ser alcançada uma tão almejada estabilidade e felicidade. Por vezes é apenas após muitas relações amorosas, muitas vezes todas elas mal sucedidas, que conseguimos começar a refletir, a colocar-nos em causa, a questionar ideias construídas sobre nós mesmos, sobre os demais, sobre as relações, sobre a realidade. Passamos a considerar que, talvez, a solução do problema não passe necessariamente por uma nova relação. Este questionamento sobre a origem das dificuldades nas nossas relações amorosas e sobre a nossa infelicidade poder levar-nos a entender que o problema pode estar dentro de nós, alojado em alguma parte menos conhecida da nossa mente e da nossa personalidade, não se tratando somente de um problema no exterior ou dos outros. É muitas vezes nesta altura que surge um pedido de ajuda psicológica.

A dependência relacional pode ser  um dos focos principais do trabalho da psicoterapia psicanalítica.

A psicoterapia psicanalítica e a psicanálise, contrariamente àquilo que algumas pessoas ainda receiam, não provoca ou promove dependência. Posto de uma forma simples: ou uma pessoa é dependente ou não o é. Se o é, então com certeza, tal como dito anteriormente, a dependência tenderá a surgir na relação terapêutica, gradualmente ou mais rapidamente, consoante o caso. Alguém com uma “dependência infantil” relativamente bem resolvida não tenderá a ficar ou a sentir-se particularmente dependente dos demais, pelo que a preocupação com a dependência não será uma preocupação para essa pessoa. Nesta situação a dependência que poderá surgir entre paciente e terapeuta tenderá a ser uma dependência madura, aquilo que no senso comum se chama de “independência”. De acordo com alguns autores da psicanálise, a vivência plena da chamada "fase da dependência infantil" não conduz à "independência", mas sim à transformação da dependência intensa e obrigatória (ou infantil, no sentido de que pertence a um período precoce do desenvolvimento infantil) numa dependência mais madura, menos intensa, imperativa e "automática".
Este tipo de psicoterapia debruça-se fortemente nas dinâmicas das relações - primeiras relações, relações subsequentes, relações amorosas, relação paciente-terapeuta e a interligação dinâmica entre todas estas relações.

A dependência madura é algo saudável e parte integrante das relações sociais a todos os níveis, quer sejam relações amorosas, de amizade, laborais ou outras.

Um dos pressupostos fundamentais da psicanálise (e, obviamente da psicoterapia psicanalítica) é a promoção da autonomia individual, estimulando o pensamento livre e independente – a expansão da capacidade de pensar. A autonomia desenvolve-se, por exemplo, através do espaço da psicoterapia, que encoraja à expressão livre em sessão – tudo pode ser falado, contrariamente ao que acontece fora da sessão, onde quase tudo pode ser falado. A possibilidade de exposição livre (sem censura) das nossas preocupações e o poder dar voz a tudo o que surgir em mente durante a sessão é uma experiência verdadeiramente libertadora e sanígena. A consulta de psicoterapia psicanalítica é um espaço de reflexão que encoraja o pensamento livre e espontâneo. Ao mesmo tempo quem procura a psicoterapia irá inaugurar uma relação nova na sua vida, uma relação que conta com a recetividade emocional do terapeuta, bem como com o seu interesse, preocupação, não julgamento e apoio emocional. A inauguração e o desenrolar desta nova relação – a relação terapêutica – em conjunto com outros aspetos, tem efeitos transformadores que promovem ao longo do tempo a passagem progressiva da dependência patológica (ou infantil) para uma capacidade de amar mais livre e adaptativa.

É importante fazer notar que uma atitude pessoal de alguma forma marcada por uma polarização da força e da total independência do caráter pode muitas vezes esconder uma aversão à dependência - dificuldade na entrega ao outro, ou em reconhecer e aceitar que os demais possam ter algo de que se precisa. Nestes casos poderíamos falar uma dependência infantil não resolvida, cronicamente abafada e não tolerada (dissociada da consciência, vivida através de outros meios ou deslocada para esses meios – relações amorosas, jogo, toxicodependências, dependência do trabalho, etc.). Surgem em clínica muitos casos em que a dependência é vivida via indução e manutenção da mesma nos demais – a personalidade contradependente. Por exemplo, a mãe médica com uma elevadíssima capacidade de funcionamento profissional e social, que leva a filha adolescente ao psicólogo dado que a mesma mal consegue funcionar socialmente e revela sintomas de depressão grave. À medida que a adolescente consegue libertar-se gradualmente dos seus sintomas via da psicoterapia e vai conquistando uma maior autonomia, a sua mãe começa a demonstrar uma redução da sua capacidade de cumprir as suas funções e responsabilidades profissionais, até ao ponto em que deixar de conseguir trabalhar.

No trabalho psicoterapêutico o psicólogo tem como função disponibilizar-se para tolerar as várias formas através das quais a pessoa se proteger da proximidade e da dependência que a relação terapêutica suscita. As defesas contra a dependência podem ser várias, como atitudes de desvalorização do terapeuta, procura de triunfo, dificuldade em receber comentários de ajuda ou outro tipo de ajuda. Podem surgir atitudes de superiorização ou crítica em relação ao terapeuta. As pessoas que vivem estes problemas nem sempre se apercebem deles enquanto aspetos denunciadores de problemas psicológicos mais profundos. Muitas vezes não há suficiente referência emocional interna para compreender como se pode de facto viver a vida de forma diferente. Por vezes são necessários vários anos de psicoterapia ou psicanálise para que alguém consiga finalmente entrar em contacto com as suas dificuldades pessoais e emocionais.

As carências e traumas precoces que existem quase sempre por detrás da dependência emocional tendem também a instalar muitas vezes um vazio interior, difícil de suportar. Esse vazio pode resultar no desinteresse pelas mais diversas áreas da vida, fazendo-se acompanhar bastante por sentimentos frequentes de aborrecimento ou tédio. As estratégias vicariantes para "curto-circuitar" o tédio ou a insuportabilidade do vazio são múltiplas e incluem, por exemplo, a procura constante de relações amorosas, encontros sexuais frequentes sem aprofundamento de vínculos, consumo de álcool, drogas, jogo, etc.. Ou seja, tudo que promova a gratificação contínua e antidepressora, o que leva a um estilo de vida de busca contínua de gratificações imediatas que resulta apenas numa "anestesia" temporária e no alimentar de um ciclo vicioso de "angústia-procura de prazer-alívio-angústia".

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