quinta-feira, junho 08, 2006

Entrevista com Elisabeth Roudinesco

Esta entrevista com Elisabeth Roudinesco foi apresentado no blog caminhar (post do dia 7 de Maio)

"Folha - Como a sra. analisa "O Livro Negro da Psicanálise"?
Elisabeth Roudinesco - Ele não contém nenhuma revelação. É um livro sem interesse e que só teve impacto porque foi capa do "Nouvel Observateur" [revista semanal de mais influência e vendagem na França].

Folha - O que mais choca nele?
Roudinesco - Ele não me choca porque é um debate antigo. Mas não se trata mais de querelas historiográficas, teóricas e intelectuais. Um "livro negro" supõe um massacre de massa, um gulag da psicanálise, muitos mortos. Tentaram inventar mortos que não existem, sobretudo drogados mortos por causa da psicanálise, além de milhares de crianças terríveis por causa de Françoise Dolto [1908-88, psicanalista especializada em infância].
Os fatos são inexatos. Freud é apresentado como um mentiroso, um falsificador. O caso de um autor sério como Patrick Mahony é exemplar. Para explicar as pulsões incestuosas de Freud, ele publicara um texto sobre a análise de Anna Freud por seu pai, num livro sério, nos EUA. No contexto do "livro negro", a pulsão incestuosa se transforma em incesto de fato para o grande público. Também não é verdade que Freud era apegado a dinheiro. Não é verdade que ele era um escroque, não é verdade que mentiu. Ele era autoritário, teve problemas com seus discípulos. Mas não há nada de secreto em sua vida.
Além disso, esse livro desenvolve uma teoria do complô, do conspiracionismo, isto é, que os psicanalistas do mundo inteiro são um movimento de bandidos, de gângsteres, que ocupam lugares indevidos nas instituições. Fica difícil discutir com autores de mentiras.

Folha - "Por Que Tanto Ódio" é uma resposta ao "Livro Negro"?
Roudinesco - Não, trata-se apenas de um artigo que fiz na imprensa seguido de uma grande nota informativa. Não tive a intenção de fazer uma análise precisa dos textos do "Livro Negro". O livro que escrevi e que é uma resposta antecipada ao livro negro é "Por Que a Psicanálise?". Esse debate entre os que combatem e os que defendem a psicanálise já aconteceu nos EUA.

Folha - As críticas à psicanálise dizem respeito, entre outras coisas, ao seu caráter não-científico. A psicanálise é uma ciência?
Roudinesco - Nunca foi. O problema é que ela desperta, como Marx, como todo movimento de emancipação que perturba a ordem do mundo, um ódio particular. Hoje não podem atacar a revolução sexual, não podem mais acusar a psicanálise de ser uma pornografia.
Mas já tentaram tudo, acusaram-na de ser uma ciência judaica, de ser uma falsa ciência. Cada época, segundo sua ideologia, a acusa de alguma coisa. A tese segundo a qual ela é uma falsa ciência remonta a antes da Primeira Guerra, mas perdeu seu impacto hoje por causa da evolução da psiquiatria, que reintegrou o campo da medicina orgânica, passando ao domínio da psicofarmacologia e das neurociências.
Agora, volta o grande debate entre os defensores do psiquismo e os organicistas, que data do fim do século 19, e que volta com o progresso da genética e das neurociências, com a idéia de que se pode tratar da doença mental sem tratamento psíquico. A psicanálise continua um obstáculo que precisa ser destruído.

Folha - Pela farmacologia?
Roudinesco - O melhor ainda é o tratamento pela palavra, a psicanálise, mais a farmacologia. O que não é desejável é a ideologia farmacológica, a idéia de tratar apenas pela farmacologia. Por outro lado, há o comportamentalismo, onde não há clínica, que trata os sujeitos como ratos de laboratório. É o condicionamento, uma ideologia extremamente perigosa para a sociedade, independentemente da psicanálise.
Tem-se um exemplo disso na idéia de que, para tratar dos desvios sexuais, devem-se realizar castrações químicas ou cirúrgicas. É o que se chama intervenção sobre o corpo e o condicionamento. Nessa visão, tratam-se os sintomas por meios que excluem a evolução humana. Ou se continua a crer que a alma humana é aperfeiçoável, mas que não há o risco zero, e isso é uma ideologia progressista. Ou então é a barbárie.
Essas pessoas pensam que se pode prevenir a delinqüência com exames nas crianças de três anos. Parece ridículo, mas acreditam nisso. De um lado, os desvios sexuais, de outro as crianças. E nós no meio. Significa que todo mundo deve passar por controle para tentar ser normal. Mas o que é ser normal?

Folha - É o controle total do Estado sobre o cidadão?
Roudinesco - Sim, mas é normal que se controle o cidadão, que se lancem políticas contra o câncer. Mas até onde se vai? Será normal que um biopoder controle nossas emoções, nosso psiquismo, nosso afeto, que determine uma norma, que não se sabe bem o que é? A experiência com os criminosos e desviantes vai nos levar a refletir sobre o que querem fazer conosco. A partir de um momento, podem considerar que todas as pessoas que fumam são criminosas, criminosas contra elas próprias e contra o outro.
É um fascismo ordinário, de que Gilles Deleuze e [Michel] Foucault descreveram o mecanismo. Vivemos num mundo unificado, no qual a alternativa é o integrismo religioso. Estamos entre a pornografia e o misticismo, entre a pornografia e o puritanismo. Como penso que a democracia é perfectível, o combate de amanhã é recusar esses sistemas.

Folha - Esse é um dos combates da psicanálise?
Roudinesco - Sim, mas ela não o enfrenta, o que é uma pena.

Folha - Por que os psicanalistas não o enfrentam? Por que não se envolvem mais na política?
Roudinesco - Porque se tornaram reacionários, cometeram erros monumentais, não se ocuparam do social, não trataram de política, tornaram-se conservadores. Mas não conservadores como Freud, um conservador esclarecido. Transformaram-se em psicoterapeutas, antes desprezados por eles. Não se vai nem pedir que os psicanalistas sejam subversivos. Confundiram a neutralidade na cura com a neutralidade política. Eles não pensam mais os problemas da sociedade; e, quando o fazem, é com interpretações psicanalíticas absolutamente incoerentes.
Enganaram-se de debate com os defensores da ciência, pois, em vez de debater os problemas de sociedade, debateram com os comportamentalistas. Essa é a tendência americana. A metade dos psicanalistas americanos é de comportamentalistas. Foram eles que fizeram o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais).
Os psicanalistas se transformaram em terapeutas comportamentalistas. E pensam que isso é ciência. Não estão mais imbuídos da força emancipadora do início, reforçada por Lacan, e da qual ainda temos vestígios na França, onde nos mobilizamos contra o comportamentalismo mais do que em qualquer parte. E por isso publicam esse livro negro.

Folha - Os autores falam de "deificação de Freud", de "hagiografia", a propósito da biografia de Ernest Jones ["A Vida e a Obra de Sigmund Freud", Imago], "de evangelho freudiano", de "peregrinação" a Viena e a Londres para conhecer as casas de Freud. Os psicanalistas seriam os discípulos de um novo messias?
Roudinesco - Essas críticas têm 50 anos de atraso. Nenhuma pessoa séria vive a psicanálise sob o ângulo de Jones. Eles acusam os psicanalistas de viverem na legenda dourada, talvez seja verdadeiro para alguns. Faz parte desse lado reacionário de que eu falava. Atacam Jones, mas esquecem trabalhos sérios sobre Freud, inclusive os meus, os de [Yosef Hayim] Yérushalmi, os de Peter Gay.

Folha - A psicanálise é vista como uma prática subversiva, de contestação da sociedade. Como praticá-la num país como a China ou sob qualquer totalitalitarismo?
Roudinesco - Não se pode praticá-la sob totalitarismos. Quando os antigos sistemas ditatoriais, totalitários, estão em via de desconstrução, começam os contatos.
É a mesma situação nos países do mundo árabe-islâmico.

Folha - Pode-se analisar alguém sem liberdade, sem democracia?
Roudinesco - Quando a palavra não é totalmente livre, não pode haver análise. Na China, há pouca coisa, menos que no mundo árabe-islâmico. Diria que os psicanalistas franceses têm um desejo de China que existe desde o maoísmo. É o sonho da China, sonho da Ásia, mais forte que eles. Só existe um psicanalista, em Chengdu, Huo Datong, objeto de todas as cobiças. Há alguns avanços da psiquiatria em Pequim. O que se passa hoje, entre os psicanalistas franceses, ocidentais e americanos, é que eles querem colonizar. É um desejo de colonização. Por isso, defendo sempre a independência.
Huo Datong fez algo muito bom, bastante independente. Mas esse é o caminho mais difícil. É preciso ao mesmo tempo ter relações com o estrangeiro e não ser colonizado, mas é muito difícil. Mas há hoje entre os psicanalistas franceses uma "chinomania". Os lacanianos têm o mesmo desejo de Oriente que Lacan. É uma identificação com Lacan, que foi ao Japão e que sonhava com a China."

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